A AMAzona Palavrarmais
A AMAzona Palavrarmais
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A AMAzona Palavrarmais
Cecilia Vicuña
(Santiago, Chile, 1948)
O livro original Palavrarmais nasceu de uma visão na qual palavras individuais se abriam para revelar suas associações interiores, permitindo que antigas e novas metáforas viessem à luz.
Em 1966, aproximadamente uma centena dessas palavras apareceram. Eu as chamei de adivinhações.
Então, em 1974, elas apareceram de novo, armando-se com um nome: palavrarmais (palavra, word, lavrar, trabalhar; armas, braços; mais, more). Uma palavra que significa: para trabalhar as palavras como se trabalha no campo é trabalhar mais; pensar no que a palavra faz é se armar com a visão das palavras. E mais: palavras são armas, talvez as únicas armas aceitáveis.*
Os poemas de uma palavra/desenhos que compõem o livro AMAzone Palabrarmas foram criados em Bogotá em 1978, depois de uma viagem para a Amazônia, onde a visão de uma encorpada Palavrarmais veio a mim: uma garota indígena voando com a palavra-arma na mão: uma pá com asas. Sua visão das palavras a fazia voar, e ela dançava e ria enquanto voava.
Eu era adolescente quando li a criação do mito Mbyá Guarani da floresta tropical: “o amor e a língua são criados ao mesmo tempo”, e estando lá senti que a Amazônia incorporava exatamente aquilo; então eu a chamei de AMAzona, zona do amor, condensando muitas línguas para ecoar o nome local: Sachamama, o espírito-mãe da floresta.
AMA é a raiz de “amanhecer” (dawn/amanhecer) e “amor” (love/amar). Zona vem do grego zone, uma faixa que envolve a cintura (aqui imaginada como um cinto verde ao redor da terra), para lembrar a “amazona” transmitida pelos gregos, provavelmente de acordo com o termo protoindo-europeu ha-maz-na “(se) luta junto”.
Em dezembro de 1977, eu estava vivendo no exílio em Bogotá e queria visitar minha prima Barbara, que vivia no Rio de Janeiro; então decidi atravessar a floresta amazônica para encontrá-la.
Quando ouvi que a autoestrada Transamazônica estava sendo construída, convidei um amigo para juntos pegarmos carona na estrada que abriria a região selvagem pela primeira vez. Mas, para chegar à autoestrada, que começava fora de Manaus, tivemos que pegar um avião cargo de Bogotá para Leticia, uma cidade ribeirinha de onde viajaríamos de barco até Manaus. Chegamos ao aeroporto de Bogotá às 4 horas da manhã, estava totalmente escuro, não havia ninguém lá, exceto dois indígenas Huitoto esperando esse pequeno avião decolar.
Era como uma bicicleta com asas. O piloto chegou e nós pagamos a ele na entrada do avião, como se fosse num ônibus. O avião não tinha portas, só um buraco para entrar. Nós subimos uma escada e sentamos em sacos de batatas. Depois de um tempo, perguntei ao piloto se eu podia ficar com ele na cabine, pois assim eu poderia olhar para baixo. Só na sua cabine havia janelas, com painéis de vidro quebrados. Perguntei a ele “quantos anos tem o avião?”, e ele me disse rindo: “É um velho Curtiss C-46, um transporte militar obsoleto da II Guerra Mundial”.
Voamos por horas sobre uma floresta ininterrupta de copas cobertas de névoa. Parecia ser o lugar sagrado mais lindo que alguém podia ver; e, quando nos aproximamos da pista de aterrissagem, em Leticia, as árvores estavam tão perto que podíamos sentir o cheiro delas sufocando o ar. Um perfume tão intenso que desvaneci como uma folha velha. O Huitoto mais novo no avião nos convidou para ficar com a família dele na floresta fora de Leticia. Esperamos toda uma semana pelo barco que desceria o Solimões (Rio Amazonas) até Manaus. Quando o barco finalmente chegou a Leticia, todos, com uma pequena rede portátil nas mãos, embarcaram.
À noite, nos pendurávamos no teto como morcegos, viajando por cinco dias para o leste até chegarmos a Manaus. A viagem toda levou dois meses até chegarmos a São Paulo, Rio de Janeiro e Bahia, retornando por Recife, no nordeste, e depois Manaus até Bogotá. Mas não vou contar toda a história agora. O que importa é que, depois de cruzar a Amazônia, voltei para Bogotá e comecei a desenhar a visão numa linha dançante contínua que aprendi com o Códice Maya Dresden. Logo meu estúdio se encheu de muitas variações da garota indígena performatizando seus atos-palavra em desenhos, recortes e trabalhos têxteis.
Mas a história de Palavrarmais começou mais cedo em Londres, em 1974, como uma resposta ao golpe militar no Chile em 11 de setembro de 1973. O golpe foi justificado como um ato preventivo postulando que o nosso presidente democraticamente eleito Salvador Allende tinha um “Plano Z” para matar seus oponentes. Um plano inexistente criado pela CIA. No entanto, com base nessa mentira, pessoas foram sequestradas, torturadas e desapareceram, e nossa democracia participativa foi aniquilada.
Compreendendo o efeito violento das mentiras, mudei minha visão da língua.
De repente, vi a palavra verdad, verdade, como dar a ver: dar na vista, e a palavra mentira, mentira, como “despedaçar a mente”. Hacer tira em espanhol é fazer em pedaços. Mas a visão vem com o nome: Palabrarmas, palavras estavam se armando para ir ao trabalho.
Entre 1974 e 1980, criei desenhos, colagens, papéis cortados, caderninhos e tecidos pendurados de Palavrarmais, primeiro em Londres e depois em Bogotá, pensando que podiam se tornar ferramentas distribuídas massivamente na luta para transformar nossa consciência da língua.
Durante esse período, fiz uma série de trabalhos têxteis para a minha exibição “Homenagem ao Vietnã” na galeria Gilberto Alzate Avendaño, em Bogotá (1977).
Nesses trabalhos, garotas vietnamitas ensinavam garotas sul-americanas a fazer uma guerra de libertação criando palavras que voam e penetram a terra. Talvez a visão da Amazônia reúna todas essas garotas num único corpo moreno e brincalhão: a Palavrarmais alada.
Depois da onda ditatorial na América Latina no início dos anos 1970, o universo de possibilidades para a distribuição de poesia estava reduzido e todas as tentativas de publicação, distribuição e exibição dessas palavras deram em nada. Em 1983, quando o primeiro livro Palavrarmais finalmente foi publicado, a edição era de somente 300 exemplares, que pouquíssimas pessoas viram. O alcance da imaginação dos anos 1970 tinha sido drasticamente subestimado, abrindo caminho para os dias de hoje, quando fake news, robôs e trolls dominam a opinião das pessoas para servir aos governantes e corporações, eliminando o direito de acesso das pessoas à legítima informação.
O nome do rio Amazonas foi dado em homenagem às mulheres guerreiras que Francisco de Orellana viu em 1541.
Hoje as filhas dessas mulheres estão liderando a defesa da floresta ameaçada por um maremoto de colonos e colonizadores pressionados por governantes e corporificações com a intenção de lucrar com a sua destruição. Mas, apesar dos horrores suportados pelas pessoas e pela floresta, a cultura indígena da Amazônia ainda está lá, nos convocando para apoiar a luta dessas pessoas para salvá-la.
Agora nós sabemos que a Floresta Amazônica estava repleta de civilizações antigas que criaram redes de “vilarejos” interconectados que maximizaram a floresta e suas criaturas com a invenção de uma “terra preta” que continua a regenerar sua própria fertilidade até mesmo hoje em dia. Vejo jardins antigos amarrados com terraplanagens geométricas e estradas cosmicamente orientadas, como a imagem do que ela poderia vir a ser novamente!
Para os Mbyá Guarani, as palavras vêm das árvores, e a floresta vem da névoa. Quando a névoa fresca desaparecer, todos nós desapareceremos.
Homens e mulheres são
incorporações de palavras
num belo corpo e a sua
principal ocupação
é obter a névoa das palavras
inspiradas
que aparece apenas para o
virtuoso cujo fervor
e cuja grandeza de coração
permitem-no receber as
canções
para trazer benefícios à
comunidade.
Coligido por León Cadogan **
Cecilia Vicuña
(Traduzido do espanhol para o inglês por James O’Hern)***
Nova York, fevereiro de 2018.
* De “Palabrarmás”, traduzido por Dirce Waltrick do Amarante (DWA) com base no texto em inglês vertido por Eliot Weinberger em Fire Over Water, Tanam Press, N.Y. 1986
** Traduzido do inglês por DWA com base na tradução de León Cadogan do texto em espanhol.
*** Traduzido do inglês por DWA com base na tradução de James O’Hern do texto em espanhol.
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